sábado, 1 de fevereiro de 2014
ENTREVISTA COM MILLÔR FERNANDES
VRB – Quem é Millôr Fernandes?
Millôr – Millôr Fernandes é jornalista amador, só recebe por fora, e não agride a camada de ozônio.
Millôr Fernandes é jornalista sem fins lucrativos.
VRB – O que é o acaso? Se Deus existe, por que há coisas que acontecem por acaso?
Millôr – O acaso é uma besteira de Deus.
É evidente que o Universo foi feito por acaso – como a represa de Assuã, a Crítica da Razão Pura e a Capela Sistina.
VRB – Então, Deus existe?
Millôr – Se Deus me der força e saúde, hei de provar que ele não existe.
VRB – O ateísta concordaria com você.
Millôr – O ateísmo é uma espécie de religião que ninguém acredita.
No longo prazo, um ateu não tem futuro.
O cara só é verdadeiramente ateu quando está muito bem de saúde.
VRB – Que tal esse Deus antropomórfico, denunciado na Grécia clássica por Anaxágoras?
Millôr – Como dá trabalho acreditar em Deus!
Há padres que falam em Deus com tal convicção que a gente se convence de que Deus não existe.
VRB – A crença em Deus não melhorou o mundo.
Millôr – Com esse mundo desgraçado, e cada vez mais, em que fomos condenados a viver, uma coisa é certa: Deus não merece existir.
Tá bem, digamos que Deus existe. Mas é evidente que fez tudo isso aqui sem a menor atenção e foi tratar de outra coisa.
VRB – Deus fez o mundo tão mal feito...
Millôr – O mal do mundo é que Deus e o Diabo envelheceram, mas o Diabo fez plástica.
VRB – Talvez seja por isso que ele é tão prestigiado por seitas ditas satânicas e sempre presente nas práticas exorcistas. Seria essa a mais fácil explicação para o mal?
Millôr – Eu vou acabar acreditando em Deus. Tá difícil acreditar em qualquer outra coisa.
VRB – A Maçonaria proclama que Deus é o Supremo Arquiteto do Universo.
Millôr – Deus, como se sabe, pra fazer o mundo não usou régua e compasso, apenas o verbo. Daí a falta de perspectiva.
VRB – Se, por acaso, você se tornasse um místico, fundaria uma religião? Seria um guru?
Millôr – Já pensei em fundar uma religião, mas tenho medo de que me sigam.
VRB – A religião inventou o pecado para oferecer salvação.
Millôr – Que pena! Quando eu nasci já não havia mais nenhum pecado original.
Um cara que só confessa as coisas pros amigo é um ateu e faz concorrência à Igreja, porque o padre está aí para isso.
VRB – A religião também inventou que cada pessoa carrega sua cruz.
Millôr – Ainda bem que não sou religioso. Deve ter alguém por aí carregando duas.
VRB – “Bem-aventurados os pobres porque herdarão o reino dos céus”. Compensação ou alienação? Os ricos estão condenados?
Millôr – Bem-aventurados os filhos dos ricos, porque eles herdarão o reino dos seus.
Pensando nisso, por que pobre não faz voto de riqueza?
A verdade é que a riqueza estraga a maior parte das pessoas – mas você não gostaria de correr os riscos?
Aos pobres, que acham, com razão, que é difícil ficar rico, é conveniente advertir que, para os ricos, é ainda mais difícil ficar pobre.
A riqueza não traz felicidade. A pobreza muito menos.
VRB – Você defenderia a pena de morte para diminuir a criminalidade?
Millôr – A pena de morte tem um aspecto definitivamente positivo: culpado, o criminoso não volta a cometer o crime; inocente, o Estado não poderá repetir o erro.
Quem mata, oficialmente ou não (a lei é omissa), está sujeito à pena de morte. Portanto, se decretarem a pena de morte, o executor da pena deve ser condenado à morte. Quem vai executar o último?
Por que tanta discussão? Afinal a vida também é uma pena de morte.
Desde que nasci estou jurado de morte.
VRB – Se eu fosse legislador, me posicionaria pela abolição do Direito das Sucessões.
Millôr – Herança é o que os descendentes recebem quando o cara não teve a sabedoria de gastar tudo antes de morrer.
Mistérios econômicos: como é que um pai, pobre, cansado, mal instruído, consegue manter quatro ou cinco filhos, e quatro ou cinco filhos, uma vez criados e educados, não conseguem manter um pai?
E como dizem lá os portugueses: quem faz herdeiros cedo, não morre tarde.
VRB – A História é uma ciência? Podemos conhecer melhor o ser humano sob a óptica dos milênios?
Millôr – A História é um troço inventado por historiadores que não concordam com que os outros historiadores inventaram antes.
A história é uma lenda, só que muito mais mentirosa.
VRB – Apesar disso, acredita-se que a História se repete.
Millôr – A história sempre se repetiu. Mas, com a energia nuclear, possivelmente o que vai se repetir é a pré-história.
VRB – Parece que a honestidade, no ser humano, é uma raridade.
Millôr – Basta olhar em volta pra ver que a honestidade não é coisa natural. Toda pessoa honesta tem um ar extremamente ressentido.
O honesto é um amador que atrapalha fundamentalmente o trabalho dos canalhas, todos profissionais.
Se a ocasião faz o ladrão, a falta de oportunidade faz a honestidade?
VRB – Mostrar-se cético parece mais exibição do que convicção.
Millôr – Cético é um sujeito que nega até Mateus – quer ver para não crer.
VRB - Você se preocupa com a morte?
Millôr – A morte é uma coisa que se deve deixar para depois.
VRB – Nas lides judiciais, mentir parece um direito, porque é amplamente exercido.
Millôr – A advocacia é a maneira legal de burlar a lei. O advogado é sócio do crime.
A notoriedade do advogado de defesa aumenta na medida em que faz voltar à circulação, com atestado de homens de bem, os piores assassinos, ladrões e contraventores.
VRB – Você acredita que a alma é o que de nós sobrevive após a morte?
Millôr – Não possuo alma. Sou, como todo mundo, uma alucinação holística e holográfica.
VRB – O ter satisfaz o ser?
Millôr – Triste é a angústia do pobre, que nunca teve nada. Mas, e angústia do rico , que sabe que não adianta ter tudo?
VRB – Os meios de comunicação, apesar de todo alarde, não têm contribuído para melhorar a capacidade intelectual das pessoas.
Millôr – Sempre houve muita besteira no mundo. Mas, no momento em que a tecnologia da comunicação se juntou com o engodo ideológico, as besteiras tornaram-se mais amplas e mais sinistras.
VRB – A tendência do mundo não é apenas a aldeia global, como pensou MacLuhan, mas o Big Brother de George Orwel.
Millôr – Em qualquer regime político tem sempre um Big Brother te vigiando. Felizmente, é incompetente.
VRB – O casamento é uma forma de escravidão consentida?
Millôr – O casamento ainda é a melhor forma de duas pessoas descobrirem que casamento não dá certo.
VRB – Você já encontrou alguém que sinceramente confessou ser vaidoso?
Millôr – Não ter vaidade é a maior de todas.
Ninguém jamais atingiu a satisfação total de sua vaidade.
VRB – Você acredita no Brasil, apesar da política?
Millôr – Este é o país onde há a maior possibilidade de se criar um mundo inteiramente novo. Caos não falta.
Brasil, condenado à esperança.
Brasil, país do futuro. Sempre.
Ser brasileiro me deixa muito subdesenvolvido.
VRB – Atualmente, os políticos brasileiros falam muito em governabilidade.
Millôr – Todos os países são difíceis de governar. Só o Brasil é impossível.
VRB – Alguns filósofos não aceitavam a democracia.
Millôr – Democracia é eu mandar em você. Ditadura é você mandar em mim.
Parodiando Santo Agostinho: “Se ninguém me perguntar o que é democracia, eu sei. Mas, se alguém me perguntar, eu não sei.”
O verdadeiro milagre brasileiro: uma democracia completamente isenta de democratas.
Democracia é a crença de que uma multidão de idiotas juntos pode resolver problemas melhor do que um cretino sozinho.
O medo das ditaduras levou-nos à ditadura da democracia.
VRB – Já que você falou em ditadura...
Millôr – A diferença entre uma democracia e um país totalitário é que numa democracia todo mundo reclama, ninguém vive satisfeito. Mas se você perguntar a qualquer cidadão de uma ditadura o que acha de seu país, ele responde sem hesitar: “Não posso me queixar.”
VRB – É a ditadura disfarçada em democracia.
Millôr – Quando você chega num país e toda a imprensa exalta a liberdade – o país é uma ditadura. Se, porém, a imprensa diz que o clima de restrições à liberdade é insuportável – você está numa democracia.
VRB – A economia é uma ciência, ou uma forma prestigiada de adivinhação? O economista é sempre muito respeitado, mesmo quando erra, o que acontece na maioria das vezes.
Millôr – O economista é um ficcionista que venceu na vida.
Pro homem comum, economia é guardar dinheiro. Pro economista, economia é gastar dinheiro do homem comum.
Que seria dos economistas se o que eles pregam desse certo?
VRB – A psicanálise não é uma ciência. Mas, apesar disso, possui alguma eficácia?
Millôr – Os psicanalistas podem não resolver o problema dos neuróticos. Mas os neuróticos resolvem o problema dos psicanalistas.
VRB – As pessoas estão, cada vez mais, preocupadas com a saúde, como meio científico de exorcizar as doenças.
Millôr – Por que os cientistas vivem descobrindo novas formas de doenças de doenças e não conseguem descobrir uma forma definitiva de saúde?
VRB – Enfatiza-se muito a coerência. Se tudo muda, se estamos sempre mudando, por que essa mania de sermos semelhantes ao que já não somos?
Millôr – Coerente é o sujeito que nunca teve outra ideia.
VRB – A sociedade está dividida entre os que são contra e os que são a favor do aborto. A vida de um ser humano, em qualquer situação, deve ser defendida?
Millôr – Pela lei das compensações, o aborto só deve ser permitido se, na outra ponta, os filhos eutanasiar os pais.
VRB – Há quem defenda o controle demográfico com a eliminação dos seres humanos tidos como inúteis à sociedade.
Millôr – A que altura da vida começar o controle da população? Com o aborto antes de três meses; ou com a eutanásia depois dos 60 anos?
VRB – Os covardes se envergonham de sua covardia e procuram escondê-la. Anseiam pela coragem que lhes falta.
Millôr – Coragem é essa estranha qualidade que nos falta exatamente no momento em que estamos mais apavorados.
Confessar covardia: que coragem!
VRB – O poder corrompe e muitos são aqueles que alegam ser contra a corrupção.
Millôr – Acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder.
Invejar os corruptos já é meia corrupção.
Muita gente que fala o tempo todo contra a corrupção está apenas cuspindo no prato em que não conseguiu comer.
Os corruptos são encontrados em várias partes do mundo, quase todas no Brasil.
VRB – Parece-me uma catástrofe: há um dilúvio de escritores no Brasil. Qual o futuro das árvores?
Millôr – A maior parte dos escritores não merece as árvores cortadas por causa deles.
Certos escritores, de original, só têm mesmo a caligrafia.
VRB – Destino ou livre-arbítrio?
Millôr – Não há acordo possível entre um homem e seu destino. O dedo do destino não deixa impressão digital.
Passei a vida pensando que diabo, afinal, estou fazendo neste mundo. Descobri – nada. Sou visita.
VRB – E a liberdade? Podemos ter livre-arbítrio, mas não liberdade, que, ao meu ver, é uma questão social.
Millôr – A liberdade começa quando a gente aprende que ela não existe.
A liberdade é apenas uma lamentável negligência das autoridades.
VRB – Segundo a Bíblia, depois da construção da torre de Babel, os homens se desentenderam, porque passaram a falar idiomas diferentes. Até hoje, temos saudade deste mito e buscamos um idioma universal.
Millôr – Todos os animais falam mesmo uma língua internacional? Ou cachorro americano late em inglês e gato argentino mia em espanhol?
VRB – Ter ou não ter dinheiro. É essa a questão?
Millôr – Se o cara acha que o dinheiro não é tudo, é rico. Se acredita que o dinheiro é tudo, é pobre.
VRB – Não Brasil, ainda é válido afirmar que o crime não compensa?
Millôr – Não é que o crime não compensa. É que, quando compensa, muda de nome.
O crime não compensa: o cara pode roubar, corromper e se locupletar. Mas acaba a vida cercado de lindas mulheres puxa-sacos, morando em horrendos palácios com mil criados ambiciosos e naufragando num iate superluxuoso, cheio de quadros e obras de arte.
O crime não compensa? E de que é que vivem carcereiros, policiais, fabricantes de cofres, advogados e juízes?
VRB – E quanto ao crime organizado?
Millôr – As autoridades dizem a toda hora que estão profundamente preocupadas com o crime organizado. Por que? Preferem o crime esculhambado?
O crime se organizou porque já não aguentava mais os assaltos da polícia.
VRB – A beleza não tem utilidade. Ela é puro prazer.
Millôr – A beleza não põe mesa. E desarruma a cama.
VRB – A erudição é uma riqueza imaterial, cujo dono, na maioria das vezes, gosta de exibi-la.
Millôr – Ainda está pra nascer o erudito que se contenha em saber só o que sabe.
VRB – A geriatria é a medicina da moda. É uma espécie de exorcismo para conjurar a velhice.
Millôr – A gerontologia é uma ciência que faz o homem ficar cada vez mais velho.
As pessoas só começam a esconder a idade quando já não é mais possível.
De que serve mentir a idade se a tua cara já está tão cheia de cronologia?
Só existe uma maneira de remoçar: é andar sempre com pessoas vinte anos mais velhas do que você.
VRB – Há pessoas temerosas de que suas ideias estejam ultrapassadas. Ou não saibam que estão.
Millôr – A única maneira de jamais ter ideias ultrapassadas é não ter nenhuma.
VRB – Que tal o mito jurídico de que todas são iguais perante a lei?
Millôr – Todos são iguais perante a ausência de leis.
No Brasil todos nascem iguais perante a Dívida Pública.
VRB – Nunca ouvi falar de que, quem perdeu uma lide, reconheceu que a justiça foi feita.
Millôr – Sou um realista: exijo injustiça igual para todos.
Justiça – loteria togada.
Livrai-me da justiça, que dos malfeitores me livro eu.
VRB – Você acredita na famosa “idade da razão”?
Millôr – Idade da razão é quando a gente faz as maiores besteiras sem ficar preocupado.
VRB – A esperança quase sempre faz mal. Principalmente quando dura a vida toda.
Millôr – O desespero até que é uma boa. O que eu não aguento mais é essa esperança.
VRB – O que você acha confiável: o diagnóstico de um médico ou de uma junta médica?
Millôr – Junta é uma matilha de doutores.
Reuniu-se a junta de médicos. O doente morreu por unanimidade.
O médico é um cientista que aplica drogas que mal conhece em pessoas que nem conhece.
Quando um médico morre, o índice de mortalidade do país aumenta ou diminui?
A maior causa de mortalidade no mundo inteiro é esse mal terrível chamado diagnóstico.
VRB – A medicina preventiva tem melhorado a saúde das pessoas, melhorado a qualidade de vida e detectando precocemente as doenças, aumentando a possibilidade de cura. Não se trata de um progresso real?
Millôr – A medicina está fazendo tais progressos que já descobriu várias curas para as quais não há doenças possíveis.
VRB – Eu minto, sempre quando necessário. Principalmente a estranhos. E você?
Millôr – É inútil chamar alguém de mentiroso. Todo mundo é.
Fala-se muita mentira com extrema sinceridade.
Mentimos mesmo quando estamos sozinhos.
Você pode desconfiar de uma verdade. Mas uma mentira, como tal, é sempre rigorosamente verdadeira.
Quem me pede pra contar toda a verdade já está me exigindo uma mentira.
VRB – Principalmente quando se exerce um cargo de poder.
Millôr – A ética do poder é a mentira.
VRB – Se a beleza é essencial, como dizia Vinicius de Morais, ama-se o feio?
Millôr – Quem ama o feio leva muito susto.
VRB – O que você acha da mudança ortográfica, que nem sequer está sendo levada a sério em Portugal?
Millôr – O usuário deve usar a ortografia com total liberdade e até rebeldia.
VRB – A gramática é uma prisão?
Millôr – Quanto à gramática deve ser rejeitada qualquer uma imposta por gramáticos. Nenhuma língua morreu por falta de gramáticos. Algumas estagnaram por ausência de escritores. Nenhuma sobreviveu sem povo.
VRB – A velhice geralmente incomoda. Há muitos velhos que não vêem qualquer vantagem nela
Millôr – Você tem de sempre pensar no lado positivo das coisas. A velhice, por exemplo; já imaginou se as rugas doessem?
VRB – Hobby é vício sofisticado? Qual o seu?
Millôr – Meu maior vício é não exercer nenhuma das minhas virtudes.
Vício foi o nome que a virtude inventou pra empatar o gozo dos outros.
VRB – Errar é humano. E, quando o computador erra?
Millôr – Na era do computador, errar é desumano.
VRB – Há quem pense que, no futuro, o computador será como um ser humano. E até melhor do que ele
Millôr – Sempre que falam do computador, ele está adulterando contas bancárias, resultados de eleições, revelando segredos de Estado. Estou desconfiado de que o computador herdou e ampliou a falta de caráter do ser humano.
Um computador, afinal, funciona exatamente igual a um tecnocrata altamente especializado. Não usa a inteligência humana.
Via: http://www.valterdarosaborges.pro.br/millor
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