sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Apotegmas do Vil Metal 2 - Millôr Fernandes

Vi o milionário saltar da limusine, caminhar tranquilamente para dobrar a esquina e penetrar na mansão onde mora. Antes de dobrar, exatamente na dobra da esquina, e nas dobras da noite, lhe saiu um trintoitão na cara acompanhado da voz surda de um sujeito que ele mal viu por trás de galhos: "Passa tudo e não chia!"

Homem do mundo, acostumado aos azares e venturas da economia da vida, o rico banqueiro não se deixa assustar. Apenas aconselha: "Calma, amigo. Passo tudo e não chio, que não sou besta. E vou te dizer uma coisa, reconheço o teu valor - você faz o que pode para conseguir o que precisa.

Como me assalta deve saber quem sou, um banqueiro, um capitalista. Mas, curiosamente, não sabe quem é, pois aceita o vergonhoso epíteto de assaltante. E, no entanto, você é um capitalista igualzinho a mim. Só que, até agora, conseguiu capital apenas pra se estabelecer com um trinta e oito. Boa noite. Posso ir?

Apotegmas do Vil Metal - Millôr Fernandes

Aumenta o mínimo, não aumenta o mínimo, o Congresso vota, o Presidente veta, o certo é que ninguém me consulta, a mim que, como o leitor não ignora ou ignora, o que dá no mesmo, tenho sempre as ideias mais geniais à mão e jamais deixei que uma câmara me subisse à cabeça.

Pois aqui vai a evidente evidência: a maneira mais simples de resolver o problema do salário mínimo é transformá-lo em mínimo mesmo. Cientificamente. Um mínimo absoluto, congelando-o em R$000,00. Com essa quantia o trabalhador poderá sempre: Respirar todo o ar que achar fundamental à sua sobrevivência ou lazer.


Exercer suas virtudes humanísticas, doando boa parte, talvez mesmo metade, do que ganha, a pessoas mais necessitadas que ainda não chegaram ao mínimo absoluto, sem diminuir em nada o que destina à sua família. Poderá arriscar na bolsa tudo que ganha e continuar com o mesmo caso um Nagi Nahas puxe o tapete pela banda podre. Eliminar de vez o vício do consumo pelo consumo, pois jamais conseguirá gastar tudo do nada que não ganha. Sentir o alívio de estar totalmente isento do Imposto de Renda.
 
 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

As coisas que chamamos de amor

“Cobiça e amor: que sentimentos diversos evocam essas duas palavras em nós! – e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes; uma vez difamado do ponto de vista dos que já possuem, nos quais ele alcançou alguma calma e que temem por sua ‘posse’; a outra vez do ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificado como ‘bom’.

Nosso amor ao próximo – não é ele uma ânsia por nova propriedade? E igualmente o nosso amor ao saber, à verdade, e toda ânsia por novidades?
Pouco a pouco nos enfadamos do que é velho, do que possuímos seguramente, e voltamos a estender os braços; ainda a mais bela paisagem não estará certa do nosso amor, após passarmos três meses nela, e algum litoral longínquo despertará nossa cobiça: em geral, as posses são diminuídas pela posse. Nosso prazer conosco procura se manter transformando algo novo em nós mesmos – precisamente a isto chamamos possuir.

Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo.
(Pode-se também sofrer da demasia – também o desejo de jogar fora, de distribuir; pode ter o honrado nome de “amor”.)

Quando vemos alguém sofrer, aproveitamos com gosto a oportunidade que nos é oferecida para tomar posse desse alguém; é o que faz o homem benfazejo e compassivo, que também chama de “amor” ao desejo de uma nova posse que nele é avivado, e que nela tem prazer semelhante ao de uma nova conquista iminente.
Mas é o amor sexual que se revela mais claramente como ânsia de propriedade: o amante quer a posse incondicional tanto sobre sua alma como sobre seu corpo, quer ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como algo supremo e absolutamente desejável.

Se considerarmos que isso não é outra coisa senão excluir todo o mundo de um precioso bem, de uma felicidade e fruição; se considerarmos que o amante visa o empobrecimento e privação de todos os demais competidores e quer tornar-se o dragão de seu tesouro, sendo o mais implacável e egoísta dos ‘conquistadores’ e exploradores; se considerarmos, por fim, que para o amante todo o resto do mundo parece indiferente, pálido, sem valor; e que ele se acha disposto a fazer qualquer sacrifício, a transtornar qualquer ordem, a relegar qualquer interesse: então nos admiraremos de que esta selvagem cobiça e injustiça do amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como o oposto do egoísmo, quando é talvez a mais direta expressão do egoísmo.

Nisso, evidentemente, o uso lingüístico foi determinado pelos que não possuíam e desejavam – os quais sempre foram em maior número, provavelmente. Aqueles que nesse campo tiveram posses e satisfação bastante deixaram escapar, aqui e ali, uma palavra sobre o ‘demônio furioso’, como fez o mais adorável e benquisto dos atenienses, Sófocles: mas Eros sempre riu desses blasfemos – eram, invariavelmente, os seus grandes favoritos.

- Bem que existe no mundo, aqui e ali, uma espécie de continuação do amor, na qual a cobiçosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra deu lugar a um novo desejo e cobiça, a uma elevada sede conjunta de um ideal acima delas: Mas quem conhece tal amor? Quem o experimentou? Seu verdadeiro nome é amizade.”

F. Nietzsche, em A Gaia Ciência.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Cosmos - Cachorros

(...) Mas eles viviam temendo outras criaturas famintas, os leões da montanha e ursos que competiam pela mesma presa, os lobos, que ameaçavam levar e devorar os mais vulneráveis entre eles. Todos os lobos queriam o osso, mas a maioria deles tinha medo de se aproximar. Esse medo se devia a altos níveis de hormônios do estresse no sangue deles. É uma questão de sobrevivência. Aproximar-se muito de humanos poderia ser fatal. Mas alguns lobos, devido a variações naturais, possuíam níveis mais baixos desses hormônios. Isso os tornava menos temerosos a humanos. Esse lobo descobriu o que uma linha de seus antepassados descobriu há 15 mil anos. Uma excelente estratégia de sobrevivência: a domesticação de humanos. Deixe que os humanos cacem, não os ameace, e deixarão que você coma o resto da comida. Você comerá mais regularmente, deixará mais descendentes e esses descendentes herdarão sua disposição. Essa seleção de domesticidade será reforçada a casa geração, até que aquela linha de lobos selvagens se tornem... cachorros. Talvez chamem de "sobrevivência dos mais amigáveis". Desde aquela época, esse foi um bom acordo para os humanos também. Os cães que comiam os restos não eram somente um esquadrão sanitário. Eram também a segurança. À medida que essa parceria entre espécies continuava, os cães também apresentaram mudanças. A beleza tornou-se uma vantagem seletiva. Quanto mais adorável, maiores suas chances de viver e passar seus genes para outra geração. O que começou como uma aliança conveniente tornou-se uma amizade que aumentou ao longo do tempo."

Texto retirado da Série "Cosmos", apresentada na FOX.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Millôr e as Leis

Taí, vigente a tal de lei que faltando imaginação chama de Lei Seca. O que, também copiando os Estados Unidos, os burocratas do legislativo-jucidiário a chamam de Tolerância Zero. Mais propriamente Intolerância 100. A Lei é estúpida como são todas, desde que se inventaram as leis. E, em nome de punir alguns malfeitores não punem e acabam com a liberdade de todos. Mas não quero discutir isso (as estatísticas provam logo no dia seguinte que os acidentes diminuíram 73%, os atropelamentos 66% e os adultérios 98%). E as pessoas continuam se afogando em rios que têm em média 50 cms de profundidade.

E a inflação atingiu o pobre do guarda, já já vai passsar a cobrar 200 pratas pra não ver nada ou não ver coisa alguma. Ou a nova lei vai proibir também a natureza humana? É humana, pois não?Quero apenas comentar, aqui e agora, a idéia, propagada pelos pessimistas de plantão que essa é mais uma lei que não vai pegar. E eu, otimista de tocaia, pergunto: "E alguma vez, em algum lugar, alguma lei pegou?". Tá bem, pode ser que eu esteja exagerando, mas fiquemos só no chamado Decálogo, ditado pelo Todo Poderoso Jeová, a seu profeta Moisés.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Professor Clóvis sobre Nietzsche e Che Guevara

"Então perceba: Nietzsche não é Che Guevara. Por que eu tô dizendo isso? Porque não faltam imbecis que relacionam intimamente os dois. Eu mesmo conheci um cidadão que tinha a foto dos dois no quarto. Ora, é uma demência conceitual. Che Guevara é um exemplo de idealista, idealista que quer fazer da América Latina o que a América Latina não é. Ora, Nietzsche é o anti-idealista por excelência e preconiza o amor pelo mundo como ele é, razão pela qual Nietzsche e Che Guevara não trocariam um único "saludo". Nada, nada. Eles não se bicariam em hipótese alguma. Eu sei que ficou na moda, sabe? Fotografia, coisa e tal, cabeludo, barburdo... ficou na moda o Nietzsche e ficou na moda o Che Guevara. E você? Você compra o que vem. Mas não seja zé ruela. São coisas incompatíveis. Por que Che Guevara é um lider revolucionário de transformação do mundo e Nietzsche tem o conceito de Amor-fati que é tudo menos isso, é o amor pelo mundo como ele é."

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Professor Clóvis e a carnificina da vida

"Portanto é possível lutar pela vida, percebendo que a morte está na vida, toda vez que o mundo te agride, te lesiona, te danifica, te decompõe, como uma rabada estragada. A hora que você entende que a morte esta na vida e que tem a ver com a tristeza, certamente você vai vender mais caro os instantes tristes. A gente se acostuma muito em se entristecer. De certa maneira a gente baixa a guarda pro mundo entristecedor muito fácil, por que acha que logo uma alegria virá e tá tudo certo. Não tá não. Uma tristeza vivida é irrecuperável, esta petrificada na eternidade. Potência perdida é irrecuperável. Uma nova alegria é uma nova alegria. Mas a tristeza experimentada produziu em você danos irreversíveis como todos os efeitos que o mundo produz sobre você. Quando você vê uma pessoa num caixão, num velório, o que você vê ali é o que sobrou de um conjunto interminável de momentos em que o mundo entristeceu. Aquilo é uma trajetória ininterrupta de tristezas concentradas e condensadas em um instante cadavérico. É a vitória definitiva do desencontro com o mundo, do desamor, da tristeza. É a vitória definitiva de um mundo que mais lesionou do que alegrou. Vitória inexorável, necessária, triunfo estatístico do mal sobre o bem. Assimetria do mal e o bem. Por que a gente já falou: numa vida em que um orgasmo dura 4 ou 5 segundos e uma enxaqueca 4 ou 5 horas, você deve imaginar que tipo de luta você tá lutando. Uma luta em que a chance de perder é de 100%. A assimetria entre o bem e o mal tem como placar final cemitérios. A assimetria entre o bem e o mal é a reveladora de que a probabilidade do mundo te entristecer e te apequenar é infinitamente maior do que a probabilidade de produzir o efeito contrário. E você dirá: o seu objetivo nessa manhã foi de fuder a vida? Não, pelo contrário. Foi mostrar pra você que quando alguma coisa te alegra essa alegria não pode ser tratada como se não tivesse importância. Quando alguém ou alguma coisa te alegra você tem que humildemente agradecer. Agradecer porque a alegria quando o mundo proporciona ela é rara. Ela é bem precioso. Só pode ser objeto do seu mais sincero amor. Quando alguém sistematicamente te alegra, esse alguém é um bem do qual você não pode prescindir. Por que a chance do mundo te entristecer é imensa. Portanto quem passa a vida alegrando os outros é de fato um antídoto raro e precioso contra a carnificina da vida. A gente só pode mesmo amar aqueles que tem o dom de, por um instante mínimo que seja, produzir em nós um ganho de potência e de perfeição." 

Extraído da aula: A dinâmica dos afetos. Link abaixo.

https://www.youtube.com/watch?feature=player_detailpage&list=UUYKyqGnlXQc-wm692ehAeXA&v=HwTcwVgc5lk

sábado, 1 de fevereiro de 2014

ENTREVISTA COM MILLÔR FERNANDES



VRB – Quem é Millôr Fernandes?

Millôr – Millôr Fernandes é jornalista amador, só recebe por fora, e não agride a camada de ozônio.
Millôr Fernandes é jornalista sem fins lucrativos.

VRB – O que é o acaso? Se Deus existe, por que há coisas que acontecem por acaso?

Millôr – O acaso é uma besteira de Deus.
É evidente que o Universo foi feito por acaso – como a represa de Assuã, a Crítica da Razão Pura e a Capela Sistina.

VRB – Então, Deus existe?

Millôr – Se Deus me der força e saúde, hei de provar que ele não existe.

VRB – O ateísta concordaria com você.

Millôr – O ateísmo é uma espécie de religião que ninguém acredita.
No longo prazo, um ateu não tem futuro.
O cara só é verdadeiramente ateu quando está muito bem de saúde.

VRB – Que tal esse Deus antropomórfico, denunciado na Grécia clássica por Anaxágoras?

Millôr – Como dá trabalho acreditar em Deus!
Há padres que falam em Deus com tal convicção que a gente se convence de que Deus não existe.

VRB – A crença em Deus não melhorou o mundo.

Millôr – Com esse mundo desgraçado, e cada vez mais, em que fomos condenados a viver, uma coisa é certa: Deus não merece existir.
Tá bem, digamos que Deus existe. Mas é evidente que fez tudo isso aqui sem a menor atenção e foi tratar de outra coisa.

VRB – Deus fez o mundo tão mal feito...

Millôr – O mal do mundo é que Deus e o Diabo envelheceram, mas o Diabo fez plástica.

VRB – Talvez seja por isso que ele é tão prestigiado por seitas ditas satânicas e sempre presente nas práticas exorcistas. Seria essa a mais fácil explicação para o mal?

Millôr – Eu vou acabar acreditando em Deus. Tá difícil acreditar em qualquer outra coisa.

VRB – A Maçonaria proclama que Deus é o Supremo Arquiteto do Universo.

Millôr – Deus, como se sabe, pra fazer o mundo não usou régua e compasso, apenas o verbo. Daí a falta de perspectiva.

VRB – Se, por acaso, você se tornasse um místico, fundaria uma religião? Seria um guru?

Millôr – Já pensei em fundar uma religião, mas tenho medo de que me sigam.

VRB – A religião inventou o pecado para oferecer salvação.

Millôr – Que pena! Quando eu nasci já não havia mais nenhum pecado original.
Um cara que só confessa as coisas pros amigo é um ateu e faz concorrência à Igreja, porque o padre está aí para isso.

VRB – A religião também inventou que cada pessoa carrega sua cruz.

Millôr – Ainda bem que não sou religioso. Deve ter alguém por aí carregando duas.

VRB – “Bem-aventurados os pobres porque herdarão o reino dos céus”. Compensação ou alienação? Os ricos estão condenados?

Millôr – Bem-aventurados os filhos dos ricos, porque eles herdarão o reino dos seus.
Pensando nisso, por que pobre não faz voto de riqueza?
A verdade é que a riqueza estraga a maior parte das pessoas – mas você não gostaria de correr os riscos?
Aos pobres, que acham, com razão, que é difícil ficar rico, é conveniente advertir que, para os ricos, é ainda mais difícil ficar pobre.
A riqueza não traz felicidade. A pobreza muito menos.

VRB – Você defenderia a pena de morte para diminuir a criminalidade?

Millôr – A pena de morte tem um aspecto definitivamente positivo: culpado, o criminoso não volta a cometer o crime; inocente, o Estado não poderá repetir o erro.
Quem mata, oficialmente ou não (a lei é omissa), está sujeito à pena de morte. Portanto, se decretarem a pena de morte, o executor da pena deve ser condenado à morte. Quem vai executar o último?
Por que tanta discussão? Afinal a vida também é uma pena de morte.
Desde que nasci estou jurado de morte.

VRB – Se eu fosse legislador, me posicionaria pela abolição do Direito das Sucessões.

Millôr – Herança é o que os descendentes recebem quando o cara não teve a sabedoria de gastar tudo antes de morrer.
Mistérios econômicos: como é que um pai, pobre, cansado, mal instruído, consegue manter quatro ou cinco filhos, e quatro ou cinco filhos, uma vez criados e educados, não conseguem manter um pai?
E como dizem lá os portugueses: quem faz herdeiros cedo, não morre tarde.

VRB – A História é uma ciência? Podemos conhecer melhor o ser humano sob a óptica dos milênios?

Millôr – A História é um troço inventado por historiadores que não concordam com que os outros historiadores inventaram antes.
A história é uma lenda, só que muito mais mentirosa.

VRB – Apesar disso, acredita-se que a História se repete.

Millôr – A história sempre se repetiu. Mas, com a energia nuclear, possivelmente o que vai se repetir é a pré-história.

VRB – Parece que a honestidade, no ser humano, é uma raridade.

Millôr – Basta olhar em volta pra ver que a honestidade não é coisa natural. Toda pessoa honesta tem um ar extremamente ressentido.
O honesto é um amador que atrapalha fundamentalmente o trabalho dos canalhas, todos profissionais.
Se a ocasião faz o ladrão, a falta de oportunidade faz a honestidade?

VRB – Mostrar-se cético parece mais exibição do que convicção.

Millôr – Cético é um sujeito que nega até Mateus – quer ver para não crer.

VRB -  Você se preocupa com a morte?

Millôr – A morte é uma coisa que se deve deixar para depois.

VRB – Nas lides judiciais, mentir parece um direito, porque é amplamente exercido.

Millôr – A advocacia é a maneira legal de burlar a lei. O advogado é sócio do crime.
           A notoriedade do advogado de defesa aumenta na medida em que faz voltar à circulação, com atestado de homens de bem, os piores assassinos, ladrões e contraventores.

VRB – Você acredita que a alma é o que de nós sobrevive após a morte?

Millôr – Não possuo alma. Sou, como todo mundo, uma alucinação holística e holográfica.

VRB – O ter satisfaz o ser?

Millôr – Triste é a angústia do pobre, que nunca teve nada. Mas, e angústia do rico , que sabe que não adianta ter tudo?

VRB – Os meios de comunicação, apesar de todo alarde, não têm contribuído para melhorar a capacidade intelectual das pessoas.

Millôr – Sempre houve muita besteira no mundo. Mas, no momento em que a tecnologia da comunicação se juntou com o engodo ideológico, as besteiras tornaram-se mais amplas e mais sinistras.

VRB – A tendência do mundo não é apenas a aldeia global, como pensou MacLuhan, mas o Big Brother de George Orwel.

Millôr – Em qualquer regime político tem sempre um Big Brother te vigiando. Felizmente, é incompetente.

VRB – O casamento é uma forma de escravidão consentida?

Millôr – O casamento ainda é a melhor forma de duas pessoas descobrirem que casamento não dá certo.

VRB – Você já encontrou alguém que sinceramente confessou ser vaidoso?

Millôr – Não ter vaidade é a maior de todas.
Ninguém jamais atingiu a satisfação total de sua vaidade.

VRB – Você acredita no Brasil, apesar da política?

Millôr – Este é o país onde há a maior possibilidade de se criar um mundo inteiramente novo.  Caos não falta.
Brasil, condenado à esperança.
Brasil, país do futuro. Sempre.
Ser brasileiro me deixa muito subdesenvolvido.

VRB – Atualmente, os políticos brasileiros falam muito em governabilidade.

Millôr – Todos os países são difíceis de governar. Só o Brasil é impossível.

VRB – Alguns filósofos não aceitavam a democracia.

Millôr – Democracia é eu mandar em você. Ditadura é você mandar em mim.
Parodiando Santo Agostinho: “Se ninguém me perguntar o que é democracia, eu sei. Mas, se alguém me perguntar, eu não sei.”
O verdadeiro milagre brasileiro: uma democracia completamente isenta de democratas.
Democracia é a crença de que uma multidão de idiotas juntos pode resolver problemas melhor do que um cretino sozinho.
O medo das ditaduras levou-nos à ditadura da democracia.

VRB – Já que você falou em ditadura...

Millôr – A diferença entre uma democracia e um país totalitário é que numa democracia todo mundo reclama, ninguém vive satisfeito. Mas se você perguntar a qualquer cidadão de uma ditadura o que acha de seu país, ele responde sem hesitar: “Não posso me queixar.”

VRB – É a ditadura disfarçada em democracia.

Millôr – Quando você chega num país e toda a imprensa exalta a liberdade – o país é uma ditadura. Se, porém, a imprensa diz que o clima de restrições à liberdade é insuportável – você está numa democracia.

VRB – A economia é uma ciência, ou uma forma prestigiada de adivinhação? O economista é sempre muito respeitado, mesmo quando erra, o que acontece na maioria das vezes.

Millôr – O economista é um ficcionista que venceu na vida.
Pro homem comum, economia é guardar dinheiro. Pro economista, economia é gastar dinheiro do homem comum.
Que seria dos economistas se o que eles pregam desse certo?
                          
VRB – A psicanálise não é uma ciência. Mas, apesar disso, possui alguma eficácia?

Millôr – Os psicanalistas podem não resolver o problema dos neuróticos. Mas os neuróticos resolvem o problema dos psicanalistas.

VRB – As pessoas estão, cada vez mais, preocupadas com a saúde, como meio científico de exorcizar as doenças.

Millôr – Por que os cientistas vivem descobrindo novas formas de doenças de doenças e não conseguem  descobrir uma forma definitiva de saúde?

VRB – Enfatiza-se muito a coerência. Se tudo muda, se estamos sempre mudando, por que essa mania de sermos semelhantes ao que já não somos?

Millôr – Coerente é o sujeito que nunca teve outra ideia.

VRB – A sociedade está dividida entre os que são contra e os que são a favor do aborto. A vida de um ser humano, em qualquer situação, deve ser defendida?

Millôr – Pela lei das compensações, o aborto só deve ser permitido se, na outra ponta, os filhos eutanasiar os pais.

VRB – Há quem defenda o controle demográfico com a eliminação dos seres humanos tidos como inúteis à sociedade.

Millôr – A que altura da vida começar o controle da população? Com o aborto antes de três meses; ou com a eutanásia depois dos 60 anos?

VRB – Os covardes se envergonham de sua covardia e procuram escondê-la. Anseiam pela coragem que lhes falta.

Millôr – Coragem é essa estranha qualidade que nos falta exatamente no momento em que estamos mais apavorados.
Confessar covardia: que coragem!

VRB – O poder corrompe e muitos são aqueles que alegam ser contra a corrupção.

Millôr – Acabar com a corrupção é o objetivo supremo de quem ainda não chegou ao poder.
Invejar os corruptos já é meia corrupção.
Muita gente que fala o tempo todo contra a corrupção está apenas cuspindo no prato em que não conseguiu comer.
Os corruptos são encontrados em várias partes do mundo, quase todas no Brasil.

VRB – Parece-me uma catástrofe: há um dilúvio de escritores no Brasil. Qual o futuro das árvores?

Millôr – A maior parte dos escritores não merece as árvores cortadas por causa deles.
Certos escritores, de original, só têm mesmo a caligrafia.

VRB – Destino ou livre-arbítrio?

Millôr – Não há acordo possível entre um homem e seu destino. O dedo do destino não deixa impressão digital.
Passei a vida pensando que diabo, afinal, estou fazendo neste mundo. Descobri – nada. Sou visita.

VRB – E a liberdade? Podemos ter livre-arbítrio, mas não liberdade, que, ao meu ver, é uma questão social.

Millôr – A liberdade começa quando a gente aprende que ela não existe.
A liberdade é apenas uma lamentável negligência das autoridades.

VRB – Segundo a Bíblia, depois da construção da torre de Babel, os homens se desentenderam, porque passaram a falar idiomas diferentes. Até hoje, temos saudade deste mito e buscamos um idioma universal.

Millôr – Todos os animais falam mesmo uma língua internacional? Ou cachorro americano late em inglês e gato argentino mia em espanhol?

VRB – Ter ou não ter dinheiro. É essa a questão?

Millôr – Se o cara acha que o dinheiro não é tudo, é rico. Se acredita que o dinheiro é tudo, é pobre.

VRB – Não Brasil, ainda é válido afirmar que o crime não compensa?

Millôr – Não é que o crime não compensa. É que, quando compensa, muda de nome.
O crime não compensa: o cara pode roubar, corromper e se locupletar. Mas acaba a vida cercado de lindas mulheres puxa-sacos, morando em horrendos palácios com mil criados ambiciosos e naufragando num iate superluxuoso, cheio de quadros e obras de arte.
O crime não compensa? E de que é que vivem carcereiros, policiais,  fabricantes de cofres, advogados e juízes?

VRB – E quanto ao crime organizado?

Millôr – As autoridades dizem a toda hora que estão profundamente preocupadas com o crime organizado. Por que? Preferem o crime esculhambado?
O crime se organizou porque já não aguentava mais os assaltos da polícia.

 VRB – A beleza não tem utilidade. Ela é puro prazer.

Millôr – A beleza não põe mesa. E desarruma a cama.

VRB – A erudição é uma riqueza imaterial, cujo dono, na maioria das vezes, gosta de exibi-la.

Millôr – Ainda está pra nascer o erudito que se contenha em saber só o que sabe.

VRB – A geriatria é a medicina da moda. É uma espécie de exorcismo para conjurar a velhice.

Millôr – A gerontologia é uma ciência que faz o homem ficar cada vez mais velho.
As pessoas só começam a esconder a idade quando já não é mais possível.
De que serve mentir a idade se a tua cara já está tão cheia de cronologia?
Só existe uma maneira de remoçar: é andar sempre com pessoas vinte anos mais velhas do que você.

VRB – Há pessoas temerosas de que suas ideias estejam ultrapassadas. Ou não saibam que estão.

Millôr – A única maneira de jamais ter ideias ultrapassadas é não ter nenhuma.

VRB – Que tal o mito jurídico de que todas são iguais perante a lei?

Millôr – Todos são iguais perante a ausência de leis.
No Brasil todos nascem iguais perante a Dívida Pública.

VRB – Nunca ouvi falar de que, quem perdeu uma lide, reconheceu que a justiça foi feita.

Millôr – Sou um realista: exijo injustiça igual para todos.
Justiça – loteria togada.
Livrai-me da justiça, que dos malfeitores me livro eu.                   

VRB – Você acredita na famosa “idade da razão”?

Millôr – Idade da razão é quando a gente faz as maiores besteiras sem ficar preocupado.

VRB – A esperança quase sempre faz mal. Principalmente quando dura a vida toda.

Millôr – O desespero até que é uma boa. O que eu não aguento mais é essa esperança.

VRB – O que você acha confiável: o diagnóstico de um médico ou de uma junta médica?

Millôr – Junta é uma matilha de doutores.
Reuniu-se a junta de médicos. O doente morreu por unanimidade.
O médico é um cientista que aplica drogas que mal conhece em pessoas que nem conhece.
Quando um médico morre, o índice de mortalidade do país aumenta ou diminui?
A maior causa de mortalidade no mundo inteiro é esse mal terrível chamado diagnóstico.

VRB – A medicina preventiva tem melhorado a saúde das pessoas, melhorado a qualidade de vida e detectando precocemente as doenças, aumentando a possibilidade de cura. Não se trata de um progresso real?

Millôr – A medicina está fazendo tais progressos que já descobriu várias curas para as quais não há doenças possíveis.

VRB – Eu minto, sempre quando necessário. Principalmente a estranhos. E você?

Millôr – É inútil chamar alguém de mentiroso. Todo mundo é.
Fala-se muita mentira com extrema sinceridade.
Mentimos mesmo quando estamos sozinhos.
Você pode desconfiar de uma verdade. Mas uma mentira, como tal, é sempre rigorosamente verdadeira.
Quem me pede pra contar toda a verdade já está me exigindo uma mentira.

VRB – Principalmente quando se exerce um cargo de poder.

Millôr – A ética do poder é a mentira.

VRB – Se a beleza é essencial, como dizia Vinicius de Morais, ama-se o feio?

Millôr – Quem ama o feio leva muito susto.

VRB – O que você acha da mudança ortográfica, que nem sequer está sendo levada a sério em Portugal?

Millôr – O usuário deve usar a ortografia com total liberdade e até rebeldia.

VRB – A gramática é uma prisão?

Millôr – Quanto à gramática deve ser rejeitada qualquer uma imposta por gramáticos. Nenhuma língua morreu por falta de gramáticos. Algumas estagnaram por ausência de escritores. Nenhuma sobreviveu sem povo.

VRB – A velhice geralmente incomoda. Há muitos velhos que não vêem qualquer vantagem nela

Millôr – Você tem de sempre pensar no lado positivo das coisas. A velhice, por exemplo; já imaginou se as rugas doessem?

VRB – Hobby é vício sofisticado? Qual o seu?

Millôr – Meu maior vício é não exercer nenhuma das minhas virtudes.
Vício foi o nome que a virtude inventou pra empatar o gozo dos outros.

VRB – Errar é humano. E, quando o computador erra?

Millôr – Na era do computador, errar é desumano.

VRB – Há quem pense que, no futuro, o computador será como um ser humano. E até melhor do que ele

Millôr – Sempre que falam do computador, ele está adulterando contas bancárias, resultados de eleições, revelando segre­dos de Estado. Estou desconfiado de que o computador herdou e ampliou a falta de caráter do ser humano.
Um computador, afinal, funciona exatamente igual a um tecnocrata altamente especializado. Não usa a inteligên­cia humana.

Via: http://www.valterdarosaborges.pro.br/millor

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O homem é um animal irracional

Fernando Pessoa1. O homem é um animal irracional, exatamente como os outros. A única diferença é que os outros são animais irracionais simples, o homem é um animal irracional complexo. É esta a conclusão que nos leva a psicologia científica, no seu estado atual de desenvolvimento. O subconsciente, inconsciente, é que dirige e impera, no homem como no animal. A consciência, a razão, o raciocínio são meros espelhos. O homem tem apenas um espelho mais polido que os animais que lhe são inferiores.

2. Sendo assim, toda a vida social procede de irracionalismos vários, sendo absolutamente impossível (exceto no cérebro dos loucos e dos idiotas) a ideia de uma sociedade racionalmente organizada, ou justiceiramente organizada, ou, até, bem organizada.

3. A única coisa superior que o homem pode conseguir é um disfarce do instinto, ou seja o domínio do instinto por meio de instinto reputado superior. Esse instinto é o instinto estético. Toda a verdadeira política e toda a verdadeira vida social superior é uma simples questão de senso estético, ou de bom gosto.


4. A humanidade, ou qualquer nação, divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte; os apreciadores de arte; e a plebe. As épocas maiores da humanidade são aquelas em que sobressaem os criadores de arte, mas não se sabe como se realizam essas épocas, porque ninguém sabe como se produzem homens de gênio.

5. Toda a vida e história da humanidade é uma coisa, no fundo, inteiramente fútil, não se percebe para que há, e só se percebe que tem que haver.

6. A plebe só pode compreender a civilização material. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.

O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não.

Fernando Pessoa, in 'Reflexões Sobre o Homem - Textos de 1926-1928'