terça-feira, 30 de agosto de 2011

Quem não ama a solidão, não ama a liberdade

Nenhum caminho é mais errado para a felicidade do que a vida no grande mundo, às fartas e em festanças (high life), pois, quando tentamos transformar a nossa miserável existência numa sucessão de alegrias, gozos e prazeres, não conseguimos evitar a desilusão; muito menos o seu acompanhamento obrigatório, que são as mentiras recíprocas.
Assim como o nosso corpo está envolto em vestes, o nosso espírito está revestido de mentiras. Os nossos dizeres, as nossas acções, todo o nosso ser é mentiroso, e só por meio desse invólucro pode-se, por vezes, adivinhar a nossa verdadeira mentalidade, assim como pelas vestes se adivinha a figura do corpo.

Antes de mais nada, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfadonha será. Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre.A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exacta do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é.

Ademais, quanto mais elevada for a posição de uma pessoa na escala hierárquica da natureza, tanto mais solitária será, essencial e inevitavelmente. Assim, é um benefício para ela se à solidão física corresponder a intelectual. Caso contrário, a vizinhança frequente de seres heterogéneos causa um efeito incómodo e até mesmo adverso sobre ela, ao roubar-lhe seu «eu» sem nada lhe oferecer em troca. Além disso, enquanto a natureza estabeleceu entre os homens a mais ampla diversidade nos domínios moral e intelectual, a sociedade, não tomando conhecimento disso, iguala todos os seres ou, antes, coloca no lugar da diversidade as diferenças e degraus artificiais de classe e posição, com frequência diametralmente opostos à escala hierárquica da natureza.
Nesse arranjo, aqueles que a natureza situou em baixo encontram-se em óptima situação; os poucos, entretanto, que ela colocou em cima, saem em desvantagem. Como consequência, estes costumam esquivar-se da sociedade, na qual, ao tornar-se numerosa, a vulgaridade domina.

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'

Editorial - Millôr Fernandes

Agora, que já avançamos pelo século XXI, podemos fazer um pequeno balanço do que o século XX nos legou.

 1. O atropelamento.
2. O salto suicida do décimo andar.
3. O envenenamento pela radioatividade.
4. A estupidificação pela televisão.
5. A queda do avião.
6. A democratização da aids.
7. A poluição, tornando verdadeira a frase "O mar não tá pra peixe".
8. O escorregão na Lua.
9. A morte no CTI.
10. A possibilidade de um final feliz, todo mundo acabando junto.

domingo, 21 de agosto de 2011

O novo homem

O homem será feito em laboratório.
Será tão perfeito como no antigório.
Rirá como gente, beberá cerveja deliciadamente.
Caçará narceja e bicho do mato.
Jogará no bicho, tirará retrato com o maior capricho.
Usará bermuda e gola roulée.
Queimará arruda indo ao canjerê, e do não-objecto fará escultura.
Será neoconcreto se houver censura.
Ganhará dinheiro e muitos diplomas, fino cavalheiro em noventa idiomas.
Chegará a Marte em seu cavalinho de ir a toda parte mesmo sem caminho.
O homem será feito em laboratório muito mais perfeito do que no antigório.
Dispensa-se amor, ternura ou desejo.
Seja como for (até num bocejo) salta da retorta um senhor garoto.
Vai abrindo a porta com riso maroto: «Nove meses, eu? Nem nove minutos.»
Quem já concebeu melhores produtos?
A dor não preside sua gestação.
Seu nascer elide o sonho e a aflição.
Nascerá bonito? Corpo bem talhado?
Claro: não é mito, é planificado.
Nele, tudo exacto, medido, bem posto: o justo formato, o standard do rosto.
Duzentos modelos, todos atraentes. (Escolher, ao vê-los, nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa a todos atende.
Perdão: acabou-se a época dos pais.
Quem comia doce já não come mais.
Não chame de filho este ser diverso que pisa o ladrilho de outro universo.
Sua independência é total: sem marca de família, vence a lei do patriarca.
Liberto da herança de sangue ou de afecto, desconhece a aliança de avô com seu neto.
Pai: macromolécula; mãe: tubo de ensaio, e, per omnia secula, livre, papagaio, sem memória e sexo, feliz, por que não? pois rompeu o nexo da velha Criação, eis que o homem feito em laboratório sem qualquer defeito como no antigório, acabou com o Homem. 


Bem feito.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Versiprosa'

sábado, 20 de agosto de 2011

Cultivando Citações 20/08/2011

"Caí em meu patético período de desligamento. Muitas vezes, diante de seres humanos bons e maus igualmente, meus sentidos simplesmente se desligam, se cansam, eu desisto. Sou educado. Balanço a cabeça. Finjo entender, porque não quero magoar ninguém. Este é o único ponto fraco que tem me levado à maioria das encrencas. Tentando ser bom com os outros, muitas vezes tenho a alma reduzida a uma espécie de pasta espiritual. Deixa pra lá. Meu cérebro se tranca. Eu escuto. Eu respondo. E eles são broncos demais para perceber que não estou mais ali."

Bukowski
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Essa em homenangem ao meu amigo Thiago Bidú.

Deus, o homem e o cavalo

"No começo do Gênese está escrito que Deus criou o homem para reinar sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem, e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus desejasse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou da vaca e do cavalo."

Milan Kundera

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Não tenho pressa

Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não; não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente aonde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não aonde penso.
Só me posso sentar aonde estou.
E isto faz rir como todas as verdades absolutamente verdadeiras,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra coisa,
E vivemos vadios da nossa realidade.
E estamos sempre fora dela porque estamos aqui.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Aspiro a um repouso absoluto

Aspiro a um repouso absoluto e a uma noite contínua. Poeta das loucas voluptuosidades do vinho e do ópio, não tenho outra sede a não ser a de um licor desconhecido na Terra e que nem mesmo a farmacopeia celeste poderia proporcionar-me; um licor que não é feito nem de vitalidade, nem de morte, nem de excitação, nem de nada. Nada saber, nada ensinar, nada querer, nada sentir, dormir e sempre dormir, tal é actualmente a minha única aspiração. Aspiração infame e desanimadora, porém sincera.

Charles Baudelaire, in "Projectos de prólogos para «Flores do Mal»"